Tributação sobre grandes fortunas e evento pandemia
19 de maio de 2020
A estufa da germinação do tributo sobre grandes fortunas se deu, na modernidade, com a experiência francesa em 1981 de um gravame extraordinário, já objeto de restrições como a complexidade técnica, sendo posteriormente transformado, em 2017, em uma carga sobre o patrimônio imobiliário líquido além de 1,3 milhão de euros.[1] No Brasil, o tema surgiu, no plenário constituinte, ao inspirar das ideias socializantes, que ilustravam a pluralidade daquele instante de redefinição da ordem jurídica, materializado no art. 153, VII, da Constituição, tendo sua cobrança a ser disciplinada por lei complementar.
A regulamentação da exigência, pendente por mais de trinta anos, depois de tentativas abortadas, retorna, diante do cenário pandêmico de necessidades emergentes, na forma do PLP 183/2019, de autoria do Senador Plinio Valério, com previsão de incidência sobre a faixa de patrimônio líquido superior a R$ 22,8 milhões, com alíquotas entre 0,5% e 1%. Este imposto real teve similares adotados, com pouco sucesso, em diversos países, concentrando os resultados negativos no desincentivo à poupança interna e na retirada de capitais rumo a sistemas tributários livres de tal compulsoriedade, o que é favorecido pelos fluxos financeiros livremente circulantes pelos mercados sob a dominância do capitalismo internacionalizado.
Embora visto como pouco justificável em razão da pesada carga de tributação interna, sob a égide da teoria de Arthur Laffer,[2] com o decorrente desestímulo em termos de custos, o aspecto positivo do imposto se acentua do lado da justiça fiscal e da solidariedade comum, como efetividade do constitucionalismo social, beneficiando a distribuição de renda numa economia posicionada, segundo o PNUD, no segundo posto de pior colocação mundial, com o 1% mais rico concentrando cerca de 28% da renda total do país, o que, numa prospectiva abrangente, pode levar a desigualdade a níveis intoleráveis ao ponto de ameaçar a própria convivência democrática, calhando ao raciocínio a fala de Thomas Piketty, cujo livro O Capital no Século XXI advoga um tributo global sobre o patrimônio em prol de um moralismo contra os mais favorecidos. Particularmente no Brasil, o exercício da propriedade está condicionado, destaque-se, à função social, ou seja, há implícito nele o partilhar da responsabilidade com o semelhante, sem o absolutismo da ótica liberal da individualidade, o que, em termos de dever jurídico, significa que a comunhão abraçada pela Lei Fundamental em favor de intervenções positivas aos menos favorecidos, coloca, no âmbito da cidadania fiscal, o ônus de todos com o fito de repartir os encargos do projeto de existência comum, correspondendo ao dever fundamental de pagar tributos, dentro da respectiva capacidade econômica.
A experiência internacional demonstra que iniciativas semelhantes de tributo não dispensaram gastos elevados de fiscalização e arrecadação, sobretudo por causa da dificuldade de precisar os vários tipos de riqueza, embora isso seja rechaçado pelo parecer da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, no dito projeto, com base no controle de dados que a Receita Federal detém como resultado do acervo de processamento sob sua alçada, dado o trabalho de identificação patrimonial nas declarações de renda.
Também a dizer que o apontamento da base imponível do IGF pelo próprio contribuinte, tendo em mira a facilidade em ocultar bens e subavaliá-los, utilizando-se de subterfúgios como transferência de coisas a pessoas jurídicas de que seja sócio, acarretaria um montante subvalorizado, além de evidenciar a desvantagem de, ao recair sobre o patrimônio estático, o imposto levar ao decréscimo de incentivos à poupança interna e ao consequente investimento, interferindo, portanto, na livre iniciativa, princípio diretor da ordem econômica. Ainda pode ser aventada negativamente a pluritributação, pois o IGF se aplicaria sobre a riqueza já tributada pelos impostos patrimoniais, afora a amputação da renda que lhe deu origem.
O tema volta à cena no instante impróprio quando as empresas estão exauridas face à inação prolongada, pelo período de paralisação das atividades produtivas, e a última cogitação que se deseja ouvir é mais imposições de custeio das despesas públicas, sem antes cuidar por uma gestão mais determinante e eficiente do crédito tributário, quer na fase administrativa como na judicial, preferindo-se sacrificar a iniciativa privada pela descapitalização e perda de competitividade do empresário nacional, que, possuidor de grande parte dos seus ativos no país, sobre ele repercutiria mais intensamente a nova exigência do que em relação aos congêneres alienígenas.
[1] O Impôt de Solidarité sur la Fortune (ISF) se transformou em 2017 em Impôt sur la Fortune Imobiiière (IFI), com exclusão de investimentos financeiros e todos os outros bens móveis da base de cálculo, com consequente baixa no universo de contribuintes.
[2] A Curva de Laffer mostra a relação entre a carga tributária e a receita, ou seja, o aumento da primeira pode chegar a um ponto em que a arrecadação se reduza pela acréscimo das relações informais e do fenômeno sonegação.
[3] Quenya Silva Correa de Paula: Doutora e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV. Possui especialização em Direito Processual Civil pela mesma instituição. Advogada.
[4] João Paulo Barbosa Lyra: Mestre em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo, Aluno Especial no Doutorado em Direito Tributário da Universidade de São Paulo, Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, Fucape e FDV.